A vida de um escritor brasileiro do gênero policial não é nada fácil. Além da dificuldade de encontrar editoras interessadas, eles sofrem a concorrência impiedosa de grandes nomes estrangeiros e seus best-sellers formatados na ciência forense e visões high tech.
Felizmente, a internet e o e-book têm oferecido uma saída para esse “caso insolúvel”. Um bom exemplo é o livro “Peças Fragilizadas”, de Vera Carvalho Assumpção, que no fim de 2012 ocupou por algumas semanas o topo dos romances policiais entre os e-books mais vendidos pela Amazon. Não foi a primeira obra da autora brasileira a figurar no topo do ranking, mas Vera retumbou o feito nas redes sociais, revelando sua verve de ativista literária cibernética.
Com cerca de 30 anos dedicados à escrita e colecionadora de várias premiações, Vera é a criadora do detetive paulista Alyrio Cobra, protagonista de três romances. Nesta entrevista para o Kbook, ela fala da carreira, de sua paixão pela história, especialmente de São Paulo, e do universo virtual, que considera um caminho para democratizar o acesso do leitor às obras literárias.
Você possui trabalhos premiados em concursos no Brasil e no exterior. Fale um pouco sobre sua carreira.
Vera Carvalho – Sempre gostei de escrever e comecei com contos. Embora, quando encontro minhas amigas, elas digam que na escola eu gostava mais de matemática. Mas sempre participava de jornaizinhos, então, acho que essas coisas combinam (risos). Depois casei, tive três filhos e parei um pouco. Quando voltei a escrever, optei pelos contos. Na época, havia muitos concursos literários no interior de São Paulo, Paraná, Minas Gerais. Tinha uns 28, 30 anos. Quando você ganha um concurso, fica animada, inscreve outro texto… Fui premiada em Franca, Barretos, Araçatuba, São Bernardo do Campo, Ubatuba, Ituiutaba, Paranavaí. Quando eu ganhava um concurso, fazia questão de ir à cidade. As pessoas eram muito calorosas.
Seus trabalhos se baseiam frequentemente em pesquisa. Este é o ponto de partida de suas obras?
Vera Carvalho – Minhas tias mais velhas sempre me contavam histórias de São Paulo e eu comecei a pesquisar para ver se eram verdadeiras. Isso me estimulou a escrever para os concursos e também sobre a história paulista. A “História exemplar de uma família cafeicultora de origem portuguesa” é sobre a família da minha mãe, da Ilha da Madeira. Ao pesquisar essa história no Arquivo do Estado acabei conhecendo outros processos, como de um padre inquirido pelo Santo Ofício, que deu origem a outro livro, “A Biografia do Padre Ezequiel do Rosário”. Teve um concurso em São Bernardo (SP) que ganhei com um conto escrito a partir dessas pesquisas. “O preço da honra perdida na rua Formosa” tratava de um caso real, que saiu inclusive no livro “Jogos Criminais” (contos policiais organizados pelo jornalista e escritor Sergio Pereira Couto, da Andross Editora). Eu ia, pesquisava e descobria processos que depois romanceava ou transformava em crônicas. Durante a pesquisa sobre a minha família, surgiu um concurso em Portugal sobre a imigração portuguesa no Brasil e alguém sugeriu que eu escrevesse um ensaio a respeito. Escrevi e ganhei uma estada de duas semanas em Évora por conta do governo português. Meus livros infanto-juvenis também surgiram de pesquisas. “Viagem Virtual” trata da chegada da locomotiva na cidade de São Paulo. O livro leva o adolescente a, por meio do computador, conhecer esse período. Fiz questão de reproduzir na última página um recorte de jornal da época que registrou o primeiro desastre de trem ocorrido aqui.
Seus últimos lançamentos são romances policiais, protagonizados por um detetive paulista.
Vera Carvalho – O detetive surgiu de uma pergunta: como eu faria para continuar contando a história da cidade que tanto gosto? Foi aí que surgiu o Alyrio Cobra como elo dessas histórias. O primeiro romance foi “Paisagens Noturnas”, que aborda as sociedades secretas que existiam na época dos estudantes da Faculdade de Direito, por volta do século XIX. A trama se passa no presente, com alguém que tenta reproduzir certas práticas daquela época.
Qual foi a inspiração para o personagem?
Vera Carvalho – Li muitos romances policiais, gosto desse gênero. Brinco até que a montagem de uma história parece uma equação matemática. É preciso montar a história antes de escrever. Pelo menos para mim funciona assim, preciso estabelecer o fio condutor, saber quem é o criminoso etc. A partir daí vou encaixando os acontecimentos e as pistas. Alyrio Cobra não foi inspirado em um único personagem, mas em vários. Ele é um ex-advogado que se tornou detetive após várias decepções. É um sujeito introspectivo que vive em São Paulo, uma cidade cosmopolita e impessoal. Assim, ele pode se adaptar a qualquer situação.
O autor brasileiro sofre grande concorrência de estrangeiros nesse gênero. Como funciona isso com você?
Vera Carvalho – É difícil para nós, autores brasileiros, nos firmarmos nessa área. Por exemplo, os autores estrangeiros possuem duas coleções bem grandes – uma da Companhia das Letras e outra da Record – onde vemos o peso da coisa. Eles chegam com o nome feito, a crítica pronta, enfim, é o melhor do que existe lá fora vindo para cá. A gente tem que fazer vingar o trabalho passo a passo.
Você está em seu terceiro romance policial. Considera que já está com o pé fincado no mercado?
Vera Carvalho – Eu não atingi ainda meu objetivo, mas acho que estou conseguindo realizar. “Peças Fragilizadas” esteve um bom tempo em primeiro lugar na Amazon, entre os livros de mistério, à frente de uma lista de peso. Claro que, para isso, estive envolvida pessoalmente em uma batalha pela sua divulgação no Facebook, Twiter etc. Agora, em 2013, pretendo fazer uma auto-publicação na Amazon. Vamos ver…
Dá para viver como escritora profissional?
Vera Carvalho – Não. Infelizmente, o retorno é pequeno. Embora os livros infanto-juvenis deem retorno maior, porque são adotados em escolas. “Viagem Virtual”, por exemplo, foi para a Feira de Bolonha e o governo comprou várias edições. Aí há um retorno, mas com um romance não. O autor precisa de uma editora grande, que coloque o livro em várias livrarias, que o leve para fora do país.
Há uns dois anos, você foi assessorada pelo coach James McSill. De que forma isso ajudou sua produção?
Vera Carvalho – Gostei muito dessa experiência. Aprendi especialmente como colocar a cena em um padrão, em uma estrutura moderna, como ocorre em um filme, que tem seus momentos para prender o expectador.
Existe algum livro escrito nesse período ou resultante desse aprendizado?
Vera Carvalho – Eu tinha um livro em gestação (“A Serpente Tatuada”), mas ele ainda passará por mais uma revisão. Depois disso, produzi com ele “Mandalas translúcidos”, que mandei para algumas editoras, mas não obtive resposta ainda. Nessa trama, que desenvolvemos juntos, Alyrio Cobra vai para Lisboa, onde investiga um assassinato.
Em “Peças Fragilizadas”, seu último romance, Alyrio Cobra se envolve com uma máfia dos transportes em São Paulo. Você acha que o leitor gosta de ler uma história identificada com seu dia a dia ou prefere se surpreender com algo inusitado?
Vera Carvalho – Se você pensar, o próprio Edgar Allan Poe, criador da ficção policial, escreveu uma história na França, que era longe dos Estados Unidos. Mas eu não sei. Eu quis situar mesmo a história em São Paulo. Teve até um comentário na Amazon sobre o livro, de uma pessoa que disse que eu peguei um pouco da história do Celso Daniel (prefeito assassinado de Santo André). Me inspirei um pouco mesmo, porque achei interessante como enredo policial, mas a trama não tem nomes, nem acusações nada disso, é uma ficção. O jornal é uma inspiração. Mesmo “Paisagens Noturnas” começa com uma professora assassinada nas proximidades de uma escola. São notícias que se repetem nos jornais. Em “O Rigor da Forma”, meu segundo romance, peguei no noticiário a história de uma moça que estudava a poetisa parnasiana Francisca Júlia (1871-1920). Ela escrevia versos perfeitos, então o crime da trama era quase perfeito. Os fatos são minha inspiração.
O gênero policial moderno, principalmente o norte-americano, apoia-se bastante na ciência forense e na tecnologia. Você estuda esses recursos para utilizar em suas tramas?
Vera Carvalho – Não. Em minhas histórias a trama conta com a perspicácia do personagem para desvendar as pistas.
Quem é seu autor preferido?
Vera Carvalho – Gosto muito de Dennis Lehane (“Sobre Meninos e Lobos”, entre outros). Ele até aposentou o casal de detetives que criou, mas sua maneira de escrever é muito interessante. Outro é o Dan Brown, que tem uma técnica fantástica, capítulos pequenos, ganchos bem feitos, embora os livros sejam muito parecidos.
Você usa bastante a internet para o contato com leitores e outros autores. A rede ajuda ou atrapalha a boa escrita?
Vera Carvalho – A internet auxilia muito a divulgação; por outro lado ela distrai. Eu tinha um computador sem internet, só para escrever, para não me distrair com email e mensagens. Mas acho a internet uma ferramenta muito boa. O livro “Paisagens Noturnas”, por exemplo, foi publicado primeiro na internet e depois descoberto por uma editora. Hoje, ele está esgotado.
Que mensagem você deixaria a quem deseja se tornar um escritor?
Vera Carvalho – A literatura é uma carreira difícil, mas os autores novatos têm hoje mais chances, as editoras estão investindo, existem muitas oficinas, acho que está se valorizando bastante a carreira de escritor. Mas, como sempre digo, é preciso sentar umas três ou quatro horas por dia e trabalhar. É um trabalho de concentração. E se você não tem inspiração, releia o que já escreveu. É preciso batalhar.
Mais sobre a autora: http://www.verakarvalho.com.br/
fonte: https://kbook.com.br/quem-escreve/a-aventura-digital-de-alyrio-cobra